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sexta-feira, 29 de março, 2024
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Pandemia: Que papel teremos quando a tragédia virar história?

Iran Coelho das Neves

“A história é escrita pelos vencedores.” A frase de George Orwel, mais recentemente retomada por Dan Brown, é em si mesma uma verdade histórica, embora a historiografia contemporânea venha dedicando cada vez mais espaço aos ‘vencidos’.

A referência vem a propósito do mais grave período vivido pela humanidade em mais de um século: a pandemia de covid-19, que já ceifou mais de 2,7 milhões de vidas, contaminou 122 milhões (números de quinta-feira, 18/03), prostrou economias nacionais até há pouco inabaláveis e, o que é pior, não dá mostras de que será totalmente subjugada em tempo previsível.

Quando, mais à frente, historiadores se debruçarem sobre o período sombrio que ora atravessamos, certamente não terão como tratar de vencedores e vencidos.

Como seres humanos, somos todos perdedores hoje, quando boa parte da humanidade a que pertencemos se defronta com a dor e a morte em escalas catastróficas.

Quando for escrito, no futuro, o doloroso capítulo da história que nos cabe vivenciar nesta difícil quadra certamente destacará, além da extraordinária rapidez com que a Ciência conseguiu desenvolver vacinas eficazes contra o novo coronavírus, muitos homens e mulheres que, em diferentes países e nas mais variadas circunstâncias, colocam-se hoje como combatentes essenciais. Seja no front da Ciência e da Pesquisa, da extenuante prática diária da medicina, da assistência humanitária ou em tantas outras frentes de combate à pandemia e de socorro a suas vítimas diretas e indiretas.

Contudo, uma amarga certeza desponta do que até aqui tem sido a história da humanidade: na crônica futura destes nossos tristes dias não haverá lugar para a imensa maioria dos incontáveis indivíduos que, de forma anônima e expressando concretamente a plenitude do ser humano, se dedicam a atenuar as dores físicas e psíquicas, o desamparo social e a penúria financeira dos milhões de vítimas diretas ou indiretas da pandemia. A história costuma ser impiedosa com heróis anônimos. Não os resgata do anonimato.

Outra certeza, porém, é menos incômoda, ainda que em nada reduza as proporções da tragédia planetária: a de que na história da pandemia de covid-19 não haverá, como dissemos, vencedores ou vencidos.

Até aqui, com a persistência de índices alarmantes de contaminação e de mortes em nações que supunham ter superado a pior fase, a trágica e insensata escassez de vacina em países como o Brasil, onde os óbitos se avolumam em escalada dantesca (foram 2.798 mortes na terça, 16/03), perdemos todos e cada um de nós como seres humanos, perde a própria humanidade como um todo.

Por isso mesmo é importante reforçar: quando em futuro ainda imprevisível, a longa agonia dessa tragédia humanitária do presente já for passado, matéria-prima dos historiadores, estes certamente se defrontarão com uma ‘novidade histórica’: pela primeira vez, ao tratar de fato tão relevante para a civilização, não terão como contrapor vitoriosos e derrotados.

Obviamente, aqueles que, por inépcia, incúria ou insensibilidade, não estiveram à altura de suas responsabilidades diante da presente crise humanitária, não escaparão, no futuro, ao implacável julgamento da história. Contudo, convém observar que a verdade histórica exige perspectiva de tempo, e não se subordina a juízos de curto prazo. Sob pena de incorrer em injustiças ou erros irremediáveis.

Porém, para a humanidade como um todo, infinitamente mais importante do que a abordagem da história no futuro, será a vitória da ciência sobre a pandemia. O que só ocorrerá quando pelo menos 70% da população do planeta for imunizada, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Até que isso ocorra, como seres humanos seguimos sendo todos perdedores, pois a tragédia que ceifa milhares de vidas a cada dia ao redor mundo configura uma derrota, ainda que momentânea em termos históricos, para toda humanidade, para a própria civilização contemporânea.

*Iran Coelho das Neves é Presidente do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do Sul.