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terça-feira, 19 de março, 2024
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Vítimas de abuso sexual na infância carregam traumas até a vida adulta

De acordo com o Disque 100, denúncias relacionadas a violência sexual estão presentes em 17% dos registros envolvendo crianças.

Ana* tinha 8 anos quando foi abusada pela primeira vez e lembra os detalhes do dia em que o próprio pai a obrigou a ter relações sexuais com ele. 23 anos depois dos episódios, a analista de recursos humanos de 31 anos ainda carrega traumas, doenças psicológicas e tenta sobreviver às memórias dolorosas de uma infância marcada por violências.

“Ele não era o melhor pai do mundo, havia abandonado minha mãe quando eu era muito pequena, mas, ao voltar para a minha vida, quando eu tinha 7 ou 8 anos, foi ótimo porque eu sempre sonhei em ter um pai. Porém, depois que ele foi morar com minha mãe, minha vida mudou totalmente. Ele bebia, se drogava, me batia e abusava de mim”, relembra.

O contexto de violência doméstica, as surras e a situação de vulnerabilidade fizeram a menina se calar diante dos abusos sexuais. 

Vítimas de abuso sexual na infância carregam traumas até a vida adulta

Anos depois dos abusos, Ana precisou lidar com as marcas da violência sexual que sofreu na infância, e acredita que o quadro de depressão, distúrbios sexuais e o episódio de tentativa de suicídio, que aconteceu em 2011, são reflexos da violência sexual. “Hoje em dia eu trato tudo isso na terapia, mas tem dias que eu só quero pensar que o mundo vai acabar”, finaliza.

Uma em cada três crianças no Brasil é vítima de abuso sexual até os 18 anos de idade e a maioria dos algozes tem algum grau de parentesco com as crianças abusadas. Durante a pandemia de coronavírus, essa realidade de violência foi escancarada.

Segundo os dados do Disque 100, telefone da Secretaria Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República, só nos cinco primeiros meses de 2021, foram registrados seis mil casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes. As denúncias relacionadas a violência sexual estão presentes em 17,5% dos cerca de 35 mil registros de violência contra crianças e adolescentes no período.

Alice* também foi abusada aos 8 anos por um amigo do pai, um homem que na época era casado e frequentava a casa da família. “A parte mais difícil é não conseguir falar sobre o abuso com ninguém, nem mesmo com psicólogos. Por mais que eu tente, as palavras não saem”, diz a jovem, de 22 anos. 

Vítimas de abuso sexual na infância carregam traumas até a vida adulta

*Os nomes são fictícios para preservar a identidade das vítimas.

Danos psicológicos

De acordo com a psicóloga Marina Cobertta, psicóloga clínica e professora dos cursos de psicologia e medicina da Univali (Universidade do Vale do Itajaí), o abuso sexual na infância é um facilitador para o surgimento de traumas e doenças psicológicas graves. “O abuso pode acarretar sérios prejuízos tanto ao desenvolvimento da criança, quanto na vida adulta, com repercussões que podem ser cognitivas, emocionais, comportamentais, físicas e sociais, mas esses prejuízos vão variar de indivíduo para indivíduo”, comenta.

Nesses casos, é importante que os pais conheçam seus filhos para identificar os comportamentos incomuns.

Vítimas de abuso sexual na infância carregam traumas até a vida adulta

Outro ponto importante é a escuta e o acolhimento da vítima. Ao identificar que uma criança pode ter sido vítima de abuso sexual, é necessário escutar os relatos sem julgamentos. “A família e a escola são peças fundamentais nesse processo. É preciso que os adultos escutem a criança no tempo dela e deixem que o ambiente seja confiável para que a vítima possa se abrir sobre o que aconteceu”, ensina.

Exploração sexual infantil

Durante a pandemia, também cresceram os casos de exploração sexual infantil. Diferente dos abusos sexuais, que não envolvem dinheiro e geralmente são cometidos por pessoas da família, a exploração sexual, — também conhecida como prostituição infantil —, é caracterizada pela relação de uma criança ou adolescente com adultos em troca de pagamento em dinheiro ou outros benefícios (veja o quadro com as diferenças).

Vítimas de abuso sexual na infância carregam traumas até a vida adulta

Por ano, o Brasil registra 500 mil casos de exploração sexual contra crianças e adolescentes, ocupando o segundo lugar no ranking de exploração sexual infantojuvenil. O primeiro país no ranking é a Tailândia.

Em dezembro do ano passado, a Polícia Federal deflagrou a última megaoperação do ano de combate ao crime. Foram cumpridos 104 mandados de busca e apreensão e outros oito de prisão preventiva, em 20 estados e no Distrito Federal. Os alvos são investigados por produzir, armazenar e divulgar material pornográfico infantil.

Eva Dengler, gerente de programas e relações empresariais da Childhood Brasil, instituição internacional de proteção à infância, afirma que um dos grandes desafios da sociedade brasileira é o combate à exploração sexual infantil e adolescente, já que a alta vulnerabilidade e situações de riscos fazem com que crianças e adolescentes tornem-se alvos fáceis.

“Meninas e meninos que estão em situação de exploração sexual geralmente estão em estado de vulnerabilidade social tão grave e já criaram um processo de dependência tão grande desse esquema, que entendem que isso é o melhor que elas podem ter, por já viverem coisas ruins antes”, detalha. Ela relembra casos de vítimas no norte do Brasil que foram aliciadas antes dos oito anos de idade.

A especialista ainda alerta que existe uma alta taxa de subnotificação da violência sexual. Um estudo produzido pela organização em 2019 apontou que apenas 10% dos casos de abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes são, de fato, notificados às autoridades.

Vítimas de abuso sexual na infância carregam traumas até a vida adulta
Lei aprovada em 2018 possibilita que crianças vítimas de violência sejam ouvidas apenas uma vez pela polícia e Justiça
DIVULGAÇÃO/PIXABAY

Apesar de faltar precisão nos dados, ela destaca que políticas públicas foram criadas nos últimos anos para proteger a vítima. Em 2018, por exemplo, entrou em vigor a Lei da Escuta Protegida (3792/15), que exige a integração entre os órgãos de atendimento de crianças e adolescentes, que deverão atuar conjuntamente.

A lei determina que a criança seja ouvida apenas uma vez pela polícia e pelo Judiciário e que seja acompanhada de profissionais que precisam ser capacitados para promoverem as entrevistas com as crianças vítimas de violência. Dessa maneira, é evitada a revitimização.

“Se a gente tem alguma expectativa como sociedade de resgatar a dignidade dessas crianças e adolescentes e possibilitar que se desenvolvam de uma maneira mais saudável, precisamos romper o ciclo de violência”, apela Dengler.

Todas as formas de violência contra crianças e adolescentes precisam ser comunicadas aos órgãos competentes. Além das delegacias de polícia e das delegacias especializadas, é possível levar a suspeita ao Conselho Tutelar, denunciar no Disque 100 ou registrar os fatos por meio do aplicativo Proteja Brasil, uma iniciativa de proteção de crianças e adolescentes coordenada pelo Unicef (Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância é um órgão das Nações Unidas ) e Ministério dos Direitos Humanos.

Fonte: R7