“Eu volto rápido”, escreveu a médica Mnique Batista, de 29 anos, em mensagem enviada ao marido por meio do WhatsApp, pouco antes de ser intubada. Semanas depois, ela morreu em decorrência das complicações da covid-19 .
Monique é uma das milhares de vítimas do novo coronavírus no Brasil. Segundo o Ministério da Saúde, o país já registrou quase 150 mil mortes pela Covid-19 — o primeiro óbito ocorreu em 12 de março, conforme a pasta.
Em todo o mundo, mais de 1 milhão de pessoas já morreram em decorrência da doença causada pelo coronavírus . O Brasil é o segundo país com mais óbitos pela covid-19, atrás apenas dos Estados Unidos, que já registrou mais de 210 mil mortes.
Em meio aos números de mortos pelo vírus, há a noiva do Arthur, o irmão da Ana Claudia, o filho mais velho de Elisangela, a madrinha da Clara, a amiga da Cristina e tantas outras histórias.
Aos familiares e amigos das vítimas da covid-19, restam a saudade e as lembranças. Em decorrência do isolamento imposto a pacientes com o coronavírus e da intubação adotada em casos graves, milhares de pessoas não conseguiram dar o último adeus.
Para muitos parentes e amigos, as mensagens trocadas por meio de aplicativos estão entre as últimas recordações. À BBC News Brasil, pessoas que perderam entes queridos mostram algumas das últimas mensagens trocadas, que ajudam a dar dimensão humana à tragédia por trás dos números.
‘Volto rápido’
Monique Batista se formou em Medicina na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) em meados de 2019. Desde o início da pandemia de covid-19, ela estava na linha de frente do combate à doença, na cidade de Campo Verde (MT).
“O sonho da vida dela, desde a infância, sempre foi ser médica. Ela era extremamente prestativa e, mesmo sendo asmática, nunca pensou em parar de trabalhar quando a pandemia começou”, diz o engenheiro agrônomo Arthur Varmeling, noivo da médica.
Em 11 de julho, Monique teve uma intensa falta de ar. Ela acreditou que fosse uma crise de asma. Após passar por exames, foi diagnosticada com a covid-19 e precisou ser internada. Segundo o noivo, 60% dos pulmões dela já estavam comprometidos.
A asma é apontada por algumas entidades médicas como um fator que pode agravar o quadro de covid-19. Há estudos, porém, que consideram que a doença não costuma representar um risco maior de complicações pelo coronavírus.
No caso de Monique, segundo Arthur, os médicos consideraram que a asma agravou duramente a situação dela. Ele conta que a falta de ar foi o principal sintoma da noiva.
A situação da médica piorou. Em 14 de julho, ela encaminhou mensagens ao noivo antes de ser levada para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
Primeiro, Monique pediu que ele cuidasse da irmã caçula dela, Letícia, de 26 anos. “Seja apoio”, escreveu. Em seguida, a médica disse que logo retornaria para casa. “Eu volto rápido. Eu prometo”, afirmou, por meio de mensagens de texto.
Pouco antes de ser levada para a UTI , ela perguntou sobre a mãe, que ainda não sabia que a filha seria intubada. “Estou raciocinando, tentando ser o mais calmo possível para pensar em como falar com a sua mãe”, respondeu o noivo.
Para Arthur, as últimas mensagens de Monique mostram o quanto ela se preocupava com a família. “Ela era inspiração e força para a mãe e para a irmã”, diz o engenheiro agrônomo.
Naquela tarde de 14 de julho, Monique foi intubada na UTI de um hospital particular em Cuiabá. Ela permaneceu sob cuidados intensos durante quase um mês. “Foram dias conturbados, de muita oração e lágrimas”, resume Arthur, que também teve a covid-19, mas apresentou sintomas considerados leves.
Segundo o noivo, o quadro dela se tornou ainda mais grave após ela contrair uma infecção hospitalar na UTI. Monique morreu em 10 de agosto. “Tem sido um período muito difícil”, diz o engenheiro agrônomo. Ele e Monique estavam juntos havia um ano e quatro meses. “A gente se amava muito. Nunca imaginei perdê-la”, lamenta.
“Por toda a minha vida, vou cuidar da mãe e da irmã dela, como ela havia me pedido”, afirma Arthur.
‘Tô apavorado’
Felipe Garcia, de 36 anos, estava assustado após apresentar sintomas da covid-19, no início de setembro. Em algumas de suas últimas mensagens, expressou o medo da doença .
“Ora por mim. Tô apavorado”, escreveu Felipe, em mensagens enviadas à irmã, a auxiliar comercial Ana Cláudia Garcia, na madrugada de 7 de setembro. Na data, o estado de saúde dele havia piorado.
A família acredita que ele, que era gerente comercial e morava em Tramandaí (RS), contraiu o vírus em uma viagem a trabalho.
Dias antes de apresentar os primeiros sintomas, Felipe dormiu na casa da irmã e do cunhado, em Gravataí, também no Rio Grande do Sul.
“Depois que o meu irmão foi embora, eu e meu esposo apresentamos sintomas, mas nos recuperamos. Acredito que o Felipe já estava com o vírus, ainda não tinha sintomas e transmitiu para a gente”, explica Ana.
Logo que apresentou sintomas, Felipe passou a contar aos parentes sobre a sua situação.
“Desde os primeiros sintomas, o meu irmão procurou uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento) em Tramandaí, mas foi liberado. Receitaram os remédios e disseram para ele ficar em casa”, relata Ana.
Uma tomografia apontou, segundo a irmã, que 70% dos pulmões de Felipe haviam sido comprometidos pela covid-19. “Ele estava gordo e acredito que isso piorou ainda mais a situação. Mesmo com as dificuldades dele, não quiseram interná-lo”, critica Ana.
Distante do irmão, ela conta que ficou muito preocupada com ele. “Fiquei nervosa e com medo. Até pensei em buscá-lo em Tramandaí, mas ele não quis”, relata.
“Sempre tive uma ligação forte com o meu irmão. Ele era uma parte de mim. Foi quem me ensinou a andar de bicicleta, dormiu comigo quando eu tive medo e era uma pessoa que eu sabia que podia ligar a qualquer hora”, relata.
Nos dias 7 e 8 de setembro, Felipe contou à família, por meio de mensagens, que estava com muitas dificuldades para respirar, além de sintomas como febre e vômito.
Para Ana, as mensagens nas quais o irmão manifesta o desespero em razão dos sintomas da covid-19 ilustram as duras consequências que a doença pode ter. “Me senti impotente. Toda a minha família está acabada com tudo isso”, lamenta.
Ela conta que o ultimo contato que teve com Felipe foi por meio de videochamada, por volta das 18h de 8 de setembro. “No mesmo dia, ele também conversou com a nossa mãe, com uma tia e com o filho dele (de três anos)”, detalha Ana.
A situação de Felipe piorou. Os parentes contam que ele procurou ajuda médica na UPA de Tramandaí, novamente, na madrugada de 9 de setembro. Horas depois, ele não resistiu e faleceu na unidade de saúde.
Na certidão de óbito consta que ele morreu em decorrência de síndrome respiratória aguda grave e cita a suspeita de covid-19, confirmada dias depois.
“Se ele tivesse recebido o atendimento médico adequado, provavelmente teria sobrevivido”, declara Ana.
“Na UPA, nos disseram que não o intubaram porque ele estava muito gordo. Falaram que fizeram tudo o que podiam pelo meu irmão. Porém, penso que foram muito negligentes com ele”, acrescenta.
A BBC News Brasil questionou a Prefeitura de Tramandaí sobre o atendimento dado a Felipe, mas não obteve respostas até a conclusão desta reportagem.
‘Quero rosas brancas em meu caixão’
Entre as últimas mensagens do técnico de enfermagem Klediston Kelps, de 22 anos, havia um pedido sobre o arranjo de flores que ele queria em sua despedida.
“Quero rosas brancas enfeitando o meu caixão e apenas uma vermelha”, escreveu para a mãe, por meio do WhatsApp, antes de ser intubado na UTI. O jovem disse a ela, em mensagem de texto, que sabia que não sobreviveria à covid-19.
“Está sendo pessimista!”, respondeu a mãe dele, a técnica de enfermagem Elisangela da Silva Faria, de 40 anos, em uma tentativa de tranquilizar o filho mais velho.
De acordo com a mãe do jovem, as mensagens foram encaminhadas na noite de 18 de julho. Klediston morreu uma semana depois.
O rapaz estava na linha de frente do combate à covid-19 em Primavera do Leste (MT), onde morava. A família acredita que ele contraiu o vírus no trabalho.
Ao todo, ele passou um mês internado em uma unidade de saúde de Primavera do Leste. Desde que deu entrada no hospital até momentos antes de ser levado para a UTI, Klediston conversou com frequência com a mãe.
“Nunca vou me acostumar a ficar sem o meu filho. É uma dor que nunca vai passar”, diz Elisangela. Ela, que tem outros dois filhos, conta que era inspiração para o jovem, que decidiu seguir na mesma profissão da mãe.
Klediston, que estava prestes a concluir o curso superior de Enfermagem, tinha diversos sonhos e um dos principais objetivos dele, segundo a mãe, era ser um bom profissional na área da saúde.
“Perder meu filho foi pior que perder a minha vida. Ajoelhei e pedi a Deus que me levasse e não levasse ele. Hoje, as pessoas podem me olhar sorrindo e vivendo aparentemente normal, mas eu não sou mais a mesma pessoa”, diz à BBC News Brasil.
“Quando não estou ocupada, estou chorando. Fico lembrando dele o tempo todo”, lamenta.
Elisangela conta que não conseguiu levar o arranjo pedido pelo filho quando o enterrou, em um sábado. “Eu tive poucas horas para enterrá-lo. Foi tudo muito rápido”, explica. Dois dias depois, ela cumpriu o desejo de Klediston. “Arrumei as flores, como ele tinha pedido, e levei ao cemitério”, diz a mãe do jovem.
Segundo Elisangela, Klediston escolheu as flores como forma de homenagear a família. “O pai dele, que morreu quando o meu filho ainda era bebê, sempre me dava rosas brancas. Ele (Klediston) sabia dessa história. E a rosa vermelha foi escolhida por causa de uma tatuagem que tenho em meu braço esquerdo”, diz.
‘Nada de pânico’
Em suas últimas mensagens, a médica Terezinha Aparecida de Matos, de 64 anos, confessou à cunhada que estava com medo das consequências da covid-19. Apesar disso, tentou tranquilizar a irmã, Elizete, e pediu calma.
Filha mais velha, Terezinha era considerada um exemplo para os irmãos, Maurício e Elizete, e para o pai, de 90 anos — a mãe já havia falecido. Na juventude, foi técnica de enfermagem. “Com esse trabalho, a doutora Terezinha conseguiu pagar o curso de Medicina e depois a especialização (em Neurologia)”, diz a cunhada dela, a professora Elaine Stande.
A médica trabalhava no Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo (SP), e estava na linha de frente do combate à covid-19. A família acredita que ela foi infectada em meio a algum plantão durante a pandemia.
Ela foi internada em 11 de maio, quando apresentou problemas de saúde em decorrência da covid-19. Segundo a família, Terezinha não tinha doença pré-existente.
Em 15 de maio, quando já estava na UTI, ela se comunicou com a família pela última vez, por meio do WhatsApp.
Nas últimas mensagens enviadas à irmã, a médica contou que dormiu de bruços , técnica que ajuda muitos pacientes no combate a doenças respiratórias graves. Terezinha relatou que, mesmo com a terapia, apresentou saturação baixa de oxigênio e teve de ser levada para a UTI. “Não estou na intubação, claro, mas não descartam”, escreveu a médica.
Ela pediu calma à irmã e explicou que foi levada à UTI como uma medida de prevenção. “Nada de pânico”, disse a Elizete. A médica escreveu que esperava que o seu quadro de saúde não piorasse em decorrência do que ela chamou de “vírus maldito”.
Pouco após as mensagens para a irmã, Terezinha conversou por mensagens com a cunhada. No diálogo, a médica desabafou sobre o medo que estava sentindo.
“Oi, estou na UTI. A Zete (irmã de Terezinha) entrou em pânico. Ela faz perguntas que não tenho como responder. Ninguém conhece essa doença e eu não tenho como ajudá-la agora. Nem sei o que falar. Tô em pânico”, escreveu a médica, nas mensagens enviadas a Elaine.
Dias depois do último diálogo com a família, Terezinha foi intubada. As complicações da covid-19 pioraram cada vez mais. Em 10 de junho, ela não resistiu.
Elaine considera que as últimas mensagens de Terezinha à irmã mostram o cuidado que a médica tinha com a família. “Ela protegia muito a irmã e o pai. Ela guardava as preocupações e os problemas para protegê-los. Tanto que quando ela foi internada, sempre pediu para a equipe entrar em contato comigo, não com a irmã ou com o pai, para protegê-los”, diz.
Meses depois da morte de Terezinha, a família ainda vive com a intensa dor da perda. “As lembranças e a saudade vêm muito à tona”, diz a cunhada da médica.
Filha de Elaine, a pequena Clara, afilhada de Terezinha, ainda está aprendendo a lidar com a saudade. Em sua última mensagem para a tia, a garota, de nove anos, havia desejado melhoras. “E quando melhorar, vamos sair juntas”, escreveu a menina.
“Se Deus quiser, fofura. E quando tudo isso acabar, tudo será muito diferente”, respondeu Terezinha.
Apesar do medo, a médica acreditava que poderia receber alta e concretizar um sonho antigo: ver a conclusão das obras de sua casa. “A doutora Terezinha trabalhava muito para terminar essa construção, que era um sonho dela. Ela passou uma década focada nisso, para dar conforto ao pai e à irmã. Mas a doutora não conseguiu ver a entrada da garagem, que era a última coisa que faltava”, comenta a cunhada da médica.
“A Terezinha não merecia trabalhar tanto e usufruir tão pouco disso”, lamenta Elaine.
‘Tá pertinho (para a chegada do bebê da amiga)’
Em 12 de abril, a médica Carolina Barros Patrocínio, de 29 anos, enviou um áudio à amiga Cristina Abreu, que estava grávida.
Na mensagem, encaminhada pelo WhatsApp, Carolina comemorou a aproximação do nascimento do bebê da amiga. “Você fala dia 21 (de abril) e parece tão longe, porque a gente perde a noção do tempo. Mas quando você fala que é na outra terça, sem ser esta, está pertinho”, disse no áudio.
Carolina tinha lúpus, doença inflamatória autoimune, e teve de se afastar dos atendimentos médicos em abril, em decorrência da pandemia. “Ela tomava imunossupressores fortíssimos. Então, se ela pegasse a covid-19 poderia ser fatal. Por isso, a médica que a acompanhava pediu que ela se afastasse dos atendimentos”, diz Cristina.
Quando mandou o último áudio para a amiga, Carolina estava em isolamento em casa, no Rio de Janeiro (RJ). Ela e Cristina se conheciam desde a adolescência e moravam no mesmo condomínio. “A Carol era como uma irmã que eu nunca tive. Quando ela passou no vestibular de Medicina, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi uma alegria absurda. Quando ela concluiu a universidade também foi um momento muito feliz”, diz Cristina, que é médica veterinária.
O áudio foi o último contato por mensagens de WhatsApp. Depois, as amigas se falaram por diversas vezes por meio de ligações e até pessoalmente.
“Como a gente morava no mesmo prédio e eu estava isolada por conta da gravidez, aguardando o parto, nos vimos algumas vezes antes de ela ser internada”, comenta Cristina.
Em 19 de abril, Carolina foi internada em um hospital particular do Rio de Janeiro, em razão de complicações do lúpus.
“Quando ela deu entrada no hospital, foi testada para a covid-19 e o resultado deu negativo”, comenta Cristina. Dias depois, a médica começou a ter febre intensa e passou a ter convulsões constantes, que não conseguiam ser controladas com remédios. Um novo exame, então, atestou que ela havia sido infectada pelo coronavírus.
A família acredita que a médica contraiu o vírus no hospital. Em razão das complicações que enfrentava pelo lúpus, a covid-19 logo se agravou. Carolina foi intubada em 25 de abril. Em 12 de maio, ela morreu.
“A minha filha era conhecida pelo sorriso radiante, mesmo nos momentos difíceis. Ela era generosa e fazia amigos por onde passava. Apesar do vazio que ela me deixou, me conforta saber que ela foi feliz durante a sua vida”, declara a dona de casa Claudia Barros Patrocínio, mãe da médica.
O filho de Cristina nasceu em 21 de abril. Carolina nunca soube da notícia, pois na data já estava inconsciente, em razão dos medicamentos .
Cristina lamenta não ter compartilhado um dos momentos mais importantes de sua vida com a amiga. Ela também não conseguiu contar a Carolina uma notícia que estava guardando para compartilhar após o parto.
“Eu iria chamar a Carol para ser a madrinha do meu filho”, lamenta.
“O coronavírus roubou o direito do meu filho de ter uma madrinha e roubou o direito da mãe da Carol de ter a sua filha por perto. Ele roubou a alegria de uma família inteira. Esse vírus é real e as pessoas precisam acreditar nisso”, diz Cristina.